sábado, 7 de agosto de 2010

“Menina tem parte com diabo?”

Taynan de Sousa Menescau (LE5TA)
taynan-menescal@hotmail.com



Maria Lucia Medeiros, autora do conto Chuvas e Trovoadas, do livro Zeus ou a Menina e os Óculos. Nascida em 15 de fevereiro de 1942, em Bragança.

“Eu nasci em Bragança, uma cidade simples do interior, com um trem de ferro e um rio na frente.Tive, portanto, uma infância bem brasileira: quintal, primos, frutas, tios, igreja, cinema Olympia.Em Belém já cheguei quase adolescente e meus fantasmas viviam largas, na arquitetura imponente de uma cidade de 250 mil habitantes que era Belém dos anos 50. Quando descobri os livros, descobri um outro jeito de viver. Personagens, situações, lugares ajudavam meu aprendizado do mundo. Ler acho que sempre escrevi. Lembro que muito menina eu me recolhia e escrevia, escrevia para mim. (MEDEIROS In A ESCRITURA VELOZ4, 1994)”


Maria Lucia, conhecida pelos amigos como Lucinha, uma pessoa apaixonada pela vida, faleceu em 08 de setembro de 2005, aos 63 anos.
Foi professora da UFPA, na disciplina Literatura infantil, fez palestras sobre suas obras, sobre Literatura de Expansão Amazônica, foi co- autora do livro didático Do Texto ao Texto: Leitura, Gramática e Criação (5º série / SEDUC / 1994).
Em “Chuvas e Trovoadas”, a autora apresenta as regras de uma época em que as mulheres/meninas eram preparadas única e exclusivamente para se tornarem boas donas de casa e boas esposas. “A professora sonhava. Sonhava e as transformava em futuras jovens senhoras, “mãos de fada”, orgulho do marido e da família...” (MEDEIROS, 1988, p.77).
Nesse período da belle époque, a burguesia preocupava se em preparar seus filhos para a vida, deixando assim de lado a infância, principalmente as meninas/mulheres que fossem prendadas, organizadas e submissas. Essas características dadas à mulher apresentadas sempre como minoria na literatura e na sociedade. A parir desse prisma o papel feminino na sociedade foi baseado as regras que a mulher deveria seguir como ser obediente devotada ao marido, filhos e afazeres domésticos, esse pensamento tomou força através dos séculos.
Maria Medeiros, com sua protagonista, a menina de cabelos cacheados, pretende com sua personagem da o grito de liberdade as mulheres oprimidas, demonstrando a “rebeldia” feminina e infantil diante das regras de um mundo arrumado e organizado.
Durante as aulas a menina demonstrava se inquieta caráter também da idade, por estar em um mundo que é para adultos e se encontra obrigada a fazer parte. Seguindo os pensamentos da menina, observamos como ela observa as tarde na aula de costura, como a menina enxerga o ambiente em que esta, e sua curiosidade para o mundo além das janelas altas. “Difícil era fugir à tentação das janelas abertas, mas muito altas...” (MEDEIROS, 1988, p. 76)
A partir do momento em que se transgride a ordem das tardes monótonas na aluna de costura, a menina de cabelos cacheados, percebe que também pode mudar sua situação perante a mudança de uma tarde tranqüila e calorenta para uma ventania seguida com uma forte chuva grossa. “Merda! Que ela disse ainda, antes de mergulhar na chuva grossa que banha ruas e calçadas...” (MEDEIROS, 1988, p.78)
A menina se liberta do mundo costurado, e se entrega a passar as tardes se deliciando com livros de aventura, fada, lendas, sonhando com um mundo que ela mesma constrói longe das regras impostas pelos adultos. A liberdade alcançada pela menina de cabelos cacheados de Maria Lucia faz um paralelo com a mulher da época que aos poucos se afasta do futuro predestinado, ao lar, marido e filho. Pode se observar essa ruptura com relação à mulher, quando já no finalzinho do conto. “E que (já ia me esquecendo) anda apaixonado por um tal de Robinson Crusoé.”(MEDEIROS, 1988, P.79) nesse trecho identifica se a mulher escolhendo por que se apaixonar e não simplesmente um casamento planejado desde a sua infância, por suas famílias.
Por tanto temos aqui um conto em que sua autora nos mostra através de outro olhar a realidade de uma sociedade em que, o que se fugir a regra se torna coisa do diabo, onde uma menina que só queria viver a infância torna se o conflito para o mundo costurados dos adultos.
Lucia através desta narrativa nada comum, trabalhando minuciosamente com os detalhes, com o cuidado com as palavras, deixa o sentido latente em cada verso desse conto. Sua poética profunda nos emociona, com uma pobre menina que acreditam ter parte com diabo, onde na verdade ela só queria viver sua infância.



REFERÊNCIAS
MEDEIROS, Maria Lúcia. Zeus ou a menina e os óculos. 1. Ed. São Paulo: Roswitha Kempf, 1988.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Literatura Brasileira: Poeta do mês João Guimarães Rosa


Um breve comentário sobre João Guimarães Rosa, um dos mais importantes escritores brasileiros. Poliglota tinha fascínio por estudo de línguas estrangeiras.

“E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas
ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional.
Principalmente,porém, estudando-se por divertimento,
gosto e distração.”
João Guimarães Rosa

Principais características nas obras de Rosa, Realismo mágico, regionalismo, liberdades e invenções lingüísticas e neologismos são algumas das características fundamentais de sua literatura.

“Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente. Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como o sofrimento dos homens.”
João Guimarães Rosa

Durante o terceiro tempo do Modernismo brasileiro, em 1962 foi publicado o livro de Guimarães Rosa Primeiras Estórias, em que narram, nas 21 Estórias temas que abordem, simbolicamente, existência humana. As histórias seguem a linha dos contos tradicionais.
Analisando rapidamente a obra de Rosa, à primeira vista, durante uma primeira leitura da obra, encontra uma certa dificuldade, na linguagem que soa erudita e inteligível. Mas essa avaliação precipitada, se desfaz a partir da segunda leitura em que o leito observa na realidade qual a intenção de Guimarães Rosa. Em que o autor busca através dos contos recupera na escrita a fala do sertão Mineiro, por meio dos personagens.

Analise da Obra, A Terceira Margem do Rio.

RESUMO DA OBRA
A terceira margem do rio conta a história de um homem que evade de toda e qualquer convivência com a família e com a sociedade, preferindo a completa solidão do rio, lugar em que, dentro de uma canoa, rema “rio abaixo, rio a fora, rio a dentro”.

Por contradizer os padrões normais de comportamento, ele é tido como um desequilibrado.

O narrador-personagem é seu filho e relata todas as tentativa da família, parentes, vizinhos e conhecidos de estabelecer algum tipo de comunicação com o solitário remador. Contudo o pai recusa qualquer contato.

A família, inicialmente aturdida com a atitude inusitada do pai, vai-se acostumando com seu abandono. Com o tempo, mudam-se da fazenda onde residiam; a irmã casa-se e vai embora, levando a mãe; o irmão também muda-se para outra cidade. Somente o narrador permanece.

Sua vida torna-se reclusa e sem sentido, a não ser pelo desejo obstinado de entender os motivos da ausência do pai: “Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio-pondo perpétuo.”

Um dia, dirige-se ao rio, grita pelo pai e propõe tomar o seu lugar na canoa. Mediante a concordância dele, o filho foge, apavorado, desistindo da idéia: “E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. (...) Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado.”

O narrador-personagem nos dá a conhecer um ser humano cujos ideais de vida divergem dos padrões aceitos como normais. Trata-se do pai do narrador, o qual com sua atitude obstinada, ao mesmo tempo, afronta e perturba seus familiares e conhecidos, que se vêem obrigados a questionar as razões de seu isolamento e alienação.

O único a persistir na busca de entendimento da opção do pai é o narrador, que não descuida dele e chega a desejar substituí-lo. A escolha do isolamento no rio instiga permanentemente o filho. Este é levado a questionar o próprio existir humano.

A obra de Rosa, A terceira Margem do Rio, seu conto mais famoso e o mais aberto conto do autor. No conto existe a intertextualidade bíblica com Noé. Um conto com seu tempo cronológico extenso, que relata toda a vida do narrador/personagem, conforme o amadurecimento do narrador/personagem são estimulados dando enfoque ao tempo psicológico.
Guimarães nos apresenta no conto sua maior característica à paisagem rural em seu espaço no conto, tendo a presença concreta do rio. O espaço relatado por Guimarães Rosa é envolvido por magia e transcendentalismo durante a leitura do leitor, no ir e vir do rio da vida. Rosa sempre teve em destaque em sua imaginação o rio.

[…] amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: a eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar a eternidade.
Guimarães Rosa

Os personagens de Guimarães Rosa, apresentam uma característica com tipos sociais, esses personagens não possuem nome. Os personagens principais o pai sempre quieto, isolado, o filho e narrador rejeitado na infância para ser companheiro do pai. Já adulto, busca a oportunidade de realizar o desejo de criança. Mas quando o consegue acredita não estar preparado para ir rumo ao desconhecido.
Segundo Marli Leite, da Universidade de São Paulo / CNPq, em seu artigo “Muitas vozes em uma só: A Terceira Margem do Rio*”

“Tratar da literatura de João Guimarães Rosa dentro das
premissas acima estabelecidas é possível porque esse é um
autor que busca a originalidade, a estilização, e para isso “trabalha”
pelo discurso,os recursos da língua. O objetivo de Guimarães construir
literatura em linguagem que, o mais possível,seja identificada
com o sertão e com o Brasil. Não é a fala contemporânea da
cidade que interessa ao autor,é a fala rural, ilimitada.”
Marli Leite.

Referências:

http://www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/guimaraesrosa/index.htm

http://www.vidaslusofonas.pt/joao_guimaraes_rosa.htm

http://www.vidaslusofonas.pt/joao_guimaraes_rosa.htm

http://pt.shvoong.com/books/185737-terceira-margem-rio-análise-sob/

acessos: nos dias 20, 22 e 23/05/2010

LEITE, Marli. Muitas vozes em uma só: A terceira margem do rio. Universidade de São Paulo/ CNPq.

http://www.ufpe.br/pgletras/Investigacoes/Volumes/Vol.21.2/Marli_Leite.pdf

Consulta 22/05/2010

ROSA, João Guimarães. 1994. A terceira margem do rio. In: —

Primeiras estórias. Ficção completa, volume II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.

Consulta em 28/04/2010


domingo, 30 de maio de 2010

DICA DE LEITURA



Obra: Alves & Cia - Eça de Queiros

Eça de Queiros (1845 – 1900)
Considerado o mais importante prosador realista e dos melhores da literatura portuguesa, Eça de Queirós deixou uma imensa produção literária, que muita influência exerceu sobre a evolução do próprio romance em língua portuguesa. Participou ativamente das polêmicas de seu tempo por meio de escritos críticos.
Uma nova fase, nova evolução literária de Eça de Queirós, em que a descrença no progresso e nos ideais revolucionários se manifesta na expressão saudosa da vida do campo e na valorização das virtudes nacionais. É o momento de obras como A Cidade e as serras e A Ilustre casa de Ramires, de contos como Suave milagre e de biografia religiosas.  


Síntese da Obra;

Alves & Cia. é a firma da qual são sócios Machado e Alves e o título deste "pequeno romance" sobre o adultério e suas conseqüências.
Quando no dia do Aniversário de Ludovina, esposa de Godofredo (Alves), este a surpreende abraçada Machado, começa a história. Alves perturbado com a surpresa, se retira e Machado foge da sala.
Alves expulsa Lulu para a casa do pai (que recebe a notícia feliz com a pensão que receberá junto) e decide que ele e Machado tirarão na sorte quem se suicidaria. Posto que Machado e as testemunhas achem isto ridículo, vai-se decidindo por um duelo de pistolas, logo por um de espadas (porque "não foi tão sério"), logo por duelo nenhum.
Ludovina viaja com o pai e volta mais tarde. Machado volta trabalhar num clima seco e frio onde antes houveram dois grandes amigos. Já nessa época Alves quer a reconciliação. O tempo vai passando, Alves se reconcilia com Ludovina, sua amizade com Machado renasce; a firma prospera, Machado casa, enviúva, casa novamente, etc. Ao final de 30 anos, os três são felizes e ainda muito unidos, mas nunca esquecem o episódio lamentável em que se envolveram; Alves sente-se feliz que não se precipitara.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Literatura Brasileira: Poeta do Mês Carlos Drummond de Andrade.


Carlos Drummond de Andrade nasceu em 1902, na cidade de Itabira, Minas Gerais. Foi funcionário público, jornalis, a literatura dedicou-se por prazer, m 1922 ligou-se a movimentos modernistas no Brasil, a partir do movimento em São Paulo, que se deu maior liberdade à criação poética.
Praticou a literatura por mais de 60 anos, publicou 16 livrosde prosa e 25 de poesia.
Drummond morreu em no Rio de Janeiro, 17 de agosto de 1987.

"Acho que a literatura, tal comoas artes plásticase a música, é uma das grandes consolações da vida, e um dos modos de elevação do ser humano sobre a prexariedade da sua condição."
Carlos Drummond de Andrade.

Em 1962, Carlos Drummond de Andrade selecionou poemas para a edição de sua
Antologia poética; no prefácio, o próprio poeta explica o critério de seleção e divide
os poemas escolhidos em nove grupos com "certas características, preocupações
e tendências" que condicionam ou definem o conjunto de sua obra.

Drummond é considerado um dos maiores representantes da literatura Brasileira so século XX. Sua carreira poética pode ser dividida em 4 fases, compostas por obras que retratam seu amadurecimento poético e a forma a qual ver o Mundo.

1 º FASE de Drummond - Gauche

Esta fase Drummond, demonstra seu desencanto em relação ao mundo. As obras dessa fase se caracterizam pelo pessimismo, individualismo, isolamento e a reflexão existencial.

A essa fase temos como referencia a obra “Brejo das Almas” 1934. Nesta obra Drummond deixa evidente o EU x MUNDO. O poema “Um homem e o seu carnaval”, apresenta o evocativo ao pessimismo e o tom do dionisíaco, essas características marcam essa primeira fase de Drummond.

Convite Triste

Meu amigo, vamos sofrer,
vamos beber, vamos ler jornal,
vamos dizer que a vida é ruim,
meu amigo, vamos sofrer.

Vamos fazer um poema
ou qualquer outra besteira.
Fitar por exemplo uma estrela
por muito tempo, muito tempo
e dar um suspiro fundo
ou qualquer outra besteira.

Vamos beber uísque, vamos
beber cerveja preta e barata,
beber, gritar e morrer,
ou, quem sabe? beber apenas.

Vamos xingar a mulher,
que está envenenando a vida
com seus olhos e suas mãos
e o corpo que tem dois seios
e tem um embigo também.
Meu amigo, vamos xingar
o corpo e tudo que é dele
e que nunca será alma.

Meu amigo, vamos cantar,
vamos chorar de mansinho
e ouvir muita vitrola,
depois embriagados vamos
beber mais outros sequestros
(o olhar obsceno e a mão idiota)
depois vomitar e cair
e dormir.

Carlos Drummond de Andrade, in 'Brejo das Almas'

O “Convite triste” é, ironicamente, uma apologia do festivo. Funda-se sobretudo num ideal de embriaguez que se projeta para uma destruição completa do sujeito, havendo com isso uma necessidade de intoxicação do corpo pelo excesso, até chegar a um estado de alienação ou de autodestruição temporária, dado à consciência finita da condição humana.

2º FASE de Drummond – Social

Marcada pelo desejo do poeta de mudar o mundo e a se solidarizar aos problemas do mundo.

Uma das obras características dessa fase é o livro “Sentimento do Mundo” 1935, em que Drummond expressa a essência do corpo rebelde, a urgência da luta de classes e na ardência da utopia socialista.

MENINO CHORANDO NA NOITE

Na noite lenta e morna,
morta noite sem ruído,
um menino chora.
O choro atrás da parede,
a luz atrás da vidraça
perdem-se na sombra dos passos abafados,
das vozes extenuadas,
e, no entanto,
se ouve até o rumor da gota de remédio
caindo na colher.

Um menino chora na noite,
atrás da parede, atrás da rua,
longe um menino chora,
em outra cidade talvez,
talvez em outro mundo.

E vejo a mão que levanta a colher,
enquanto a outra sustenta a cabeça
e vejo o fio oleoso
que escorre pelo queixo do menino,
escorre pela rua, escorre pela cidade,
um fio apenas.
E não há mais ninguém no mundo
A não esse menino chorando.


Sentimento do mundo, 1935


Drummond tem um enorme sentido social e uma vontade de que a utopia da fraternidade e solidariedade seja possível no mundo. Nesta sensibilidade enquadra-se o poema "Menino chorando na noite" que classifica-se como um poema de ternura, enquanto nele se sublinha a força da criança, como símbolo de vida, tendo em vista sua dor e os cuidados que a ele são prestados.

Um poema bastante emotivo onde o poeta sofre com o sofrimento do outro. As lágrimas caindo simbolizam a dor intensa e universal. Ser triste dói.

3º FASE – poesia filosófica

Os poemas dessa fase tem uma preocupação com temas universais, com a vida e a morte. Uma das obras dessa fase é “A vida passada a limpo”, em que retrata Drummond, mas maduro em sua estética poética, trazendo em seus poemas temas eternos, amor, vida, morte, memória e também a melancolia de alguns poemas.

Nessa fase são estão alguns de seus melhores poemas de amor, inspirado na maturidade do poeta.

Véspera

Amor: em teu regaço as formas sonham
o instante de existir: ainda é bem cedo
para acordar, sofrer. Nem se conhecem
os que se destruirão em teu bruxedo.

Nem tu sabes, amor, que te aproximas
a passo de veludo. És tão secreto,
reticente e ardiloso, que semelhas
uma casa fugindo ao arquitecto.

Que presságios circulam pelo éter,
que signos de paixão, que suspirália
hesita em consumar-se, como flúor,
se não a roça enfim tua sandália?

Não queres morder célere nem forte.
Evitas o clarão aberto em susto.
Examinas cada alma. É fogo inerte?
O sacrifício há de ser lento e augusto.

Então, amor, escolhes o disfarce.
Como brincas (e és sério) em cabriolas,
em risadas sem modo, pés descalços,
no círculo de luz que desenrolas!

Contempla este jardim: os namorados,
dois a dois, lábio a lábio, vão seguindo
de teu capricho o hermético astrolábio,
e perseguem o sol no dia findo.

E se deitam na relva; e se enlaçando
num desejo menor, ou na indecisa
procura de si mesmos, que se expande,
corpóreos, são mais leves do que brisa.

E na montanha-russa o grito unânime
é medo e gozo ingénuo, repartido
em casais que se fundem, mas sem flama,
que só mais tarde o peito é consumido.

Olha, amor, o que fazes desses jovens
(ou velhos) debruçados na água mansa,
relendo a sem-palavra das estórias
que nosso entendimento não alcança.

Na pressa dos comboios, entre silvos,
carregadores e campainhas, rouca
explosão de viagem, como é lírico
o batom a fugir de uma a outra boca.

Assim teus namorados se prospectam:
um é mina do outro; e não se esgota
esse ouro surpreendido nas cavernas
de que o instinto possui a esquiva rota.

Serão cegos, autómatos, escravos
de um deus sem caridade e sem presença?
Mas sorriem os olhos, e que claros
gestos de integração, na noite densa!

Não ensaies de mais as tuas vítimas,
ó amor, deixa em paz os namorados
Eles guardam em si, coral sem ritmo,
os infernos futuros e passados.

Carlos Drummond de Andrade, in 'A Vida Passada a Limpo'

Referencias

http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/b/brejo_das_almas

http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/s/sentimento_do_mundo_livro

http://www.novacultura.de/0208drummond.html

http://blogdogutemberg.blogspot.com/2008/01/amor-natural-de-drummond.html

acesso entre 09, 10 e 11/05/2010


domingo, 16 de maio de 2010


Após um logo tempo sem postagens... Volto para divulgar os encantos das letras e o fantástico mundo dos livros... Aguardem.
Minha foto
"A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade." Carlos Drummond de Andrade